Bemvindo ao Site do Brito
José Augusto Pereira Brito
http://www.mackenzie.br/brito

LEGISLAÇÃO - SOFTWARE - BUG DO MILÊNIO

Equacionamento legal do Bug do Milênio

Este artigo visa apontar a abordagem que parece mais adequada para se equacionar as principais questões legais do "Bug do Milênio"( "Bug" ).

Como se sabe, o Bug decorre da programação de datas com apenas duas casas para indicação do ano, logo, 2000 seria lido como 00, ou melhor, como 1900.

Basicamente, há dois meios de solução técnica: expandir para quatro as casas indicativas de ano, o que resolve em definitivo mas é caro, demorado e complexo, ou reprogramar de modo que 99 seja lido como, p. ex., 72( já que 1972 tem as mesmas características que 2000, em termos de calendário ), o que é mais barato, rápido e simples, porém resolve apenas provisoriamente.

A complicar, boa parte da reprogramação há de ser feita em linguagens antigas, para as quais hoje existe menos pessoal apto, e, especialmente, calcula-se que 70% dos casos do Bug não estão em computadores, mas sim em "embedded chips", microprocessadores presentes em equipamentos diversos, como sensores, leitores de cartão, fax, vídeo, etc., etc., utilizados em praticamente todos os setores da vida cotidiana.

Como o propósito deste artigo é de enunciar as questões apenas como ilustração para demonstrar o procedimento mais apropriado para enquadramento prático do assunto, aqui nos concentraremos nas questões entre fornecedores e consumidores de informática, deixando de lado as entre acionistas e administradores, seguradoras e segurados, bancos e seus clientes, particulares e Administração Pública, etc.

Pela mesma razão, deixamos de comentar sobre aspectos contratuais, que incluem, dentre outros, verificar se há cláusulas de limitação de responsabilidades( que são aceitáveis se o consumidor for pessoa jurídica e se a limitação for de natureza quantitativa, consistindo em um teto financeiro ), se há cláusula de seguro e qual sua cobertura, qual a extensão dada à garantia contratual, qual a abrangência da manutenção corretiva e da evolutiva, etc.

Já as questões derivadas da legislação, ligam-se à iniciativa e ao custo de se promover a solução técnica para o Bug. Do ponto de vista da iniciativa, as controvérsias oscilam entre se caberia ao fornecedor ou ao consumidor tomá-la. A assumir-se a premissa de que o Bug seja um "defeito", caberia ao fornecedor "corrigí-lo", com base na "garantia" existente, ou na "manutenção" regular, sem custo adicional. Diametralmente oposta, outra corrente sustenta que a reprogramação é uma "melhoria", como que uma nova funcionalidade, portanto, caberia ao consumidor a iniciativa de contratá-la, pagando pela mesma.

Se adotarmos o método de definição a priori, teremos de escolher dentre tais correntes de interpretação qual delas é "a" correta. Infelizmente, constata-se, por vezes, a precipitação em tratar desta forma o equacionamento legal das questões do Bug, especialmente por parte de profissionais menos experientes nessa área especializada.

Qual o problema da definição apriorística? É que "defeito", "garantia", "correção", "manutenção" e "melhoria" não são conceitos de significado único e uniforme; ao contrário, variam conforme as circunstâncias concretas do caso a que sejam aplicados. Veja-se o caso de "defeito": o Código de Defesa do Consumidor( "CDC" ) traz definição legal, que o caracteriza como o não oferecimento da "segurança legitimamente esperada", levando em conta a "apresentação" do produto, "os usos e os riscos que razoavelmente dele se espera", "a época em que foi colocado em circulação", além de outras "circunstâncias relevantes". Visivelmente, todos esses itens demandam análise em concreto, dado o seu caráter genérico. Por isso mesmo é que adotar definição a priori , ignorando as particularidades de cada caso, fatalmente leva a erros ou acertos de modo absolutamente aleatório e incontrolável.

Muito bem, inevitável a análise caso-a-caso, mas, sujeitar o assunto ao sabor das circunstâncias não implicaria em torná-lo inadministrável, de tão complexo e pouco prático? Não, se houver domínio de aplicação de tais conceitos dentro do chamado Direito da Informática, o que permite reduzir, e aclarar, com propriedade, as variáveis de um levantamento de situações, tornando-as administráveis, pela seleção e racionalização.

Mais precisamente, em que consiste isto? Em examinar, à luz do campo específico do Direito aplicável ao setor, as características de cada caso, visando compor ou defender da melhor maneira os interesses em jogo. Exemplo: nas situações em que a doutrina e a jurisprudência estrangeiras desta área( além da nacional, ainda reduzidíssima ) qualificam as obrigações do fornecedor como obrigações de resultado, a solução é uma, e nas outras em que elas qualificam como simples obrigações de envidar melhores esforços, a solução é outra, inclusive em termos de a quem compete o ônus da prova. Nessa triagem, elas se apropriam de tais conceitos de modo bem peculiar, bastante distinto das noções tradicionais( as quais, por sua vez, se referem a situações completamente diversas das da informática ).

Ainda no mesmo exemplo: o CDC diz que o ônus da prova é do fornecedor? Não, ele diz que isso deve acontecer quando o consumidor seja "hipossuficiente"( tradução: menos informado ), o que nem sempre ocorre na área da informática. Além disso, o próprio CDC determina a "compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico", e aí está a abertura para, de novo, interpretar as normas - inclusive a, menos conhecida, "Lei da Informática", que também estabelece a inversão do ônus da prova - sob a ótica, específica, do Direito da Informática.

Bem, isto é "ciência aplicada", pronta para ser utilizada. Mas e os casos judiciais que já têm surgido? Comparado com o potencial respectivo, são ainda muito poucos( nos EUA, em torno de 80; no Brasil, apenas um, encerrado por acordo ). A explicação é de que na maior parte das vezes o Bug só produzirá efeitos na virada deste ano. E o que ensinam tais decisões?

Fundamentalmente, apontam na mesma direção que comentamos acima. Discutem qual o nível de qualidade implicitado pela garantia, quando se pode considerar o Bug como defeito ou como melhoria, em quais casos há direito a simples correção e em quais há direito também a indenizações, etc. Os resultados, variam muito, e dependem dos fatos e da forma dos pedidos. Nos casos mais evidentes, i.e., quando o Bug já se fez sentir( ex.: cartões de crédito recusados por constar data de expiração pós-1999 ), as condenações têm sido frequentes. Mas em outras situações( ex.: danos previsíveis mas ainda não ocorridos ), não há, no momento, amostragem que permita traçar um padrão.

Visto que a jurisprudência ainda é incipiente, enfoquemos a legislação. No exterior, leis têm sido editadas com o intuito de estabelecer um equilíbrio entre a posição dos fornecedores e a dos consumidores( particularmente, no tocante a limite de indenizações, para evitar expor os fornecedores a responsabilidades virtualmente ilimitadas, muito além de seus recursos ).

No Brasil, tirante as normas de órgãos reguladores como Banco Central, CVM, etc., bem como os 2 projetos de lei ora em tramitação no Congresso( com destaque para o do Dep. Luiz Piauhylino ), há, dentre as normas em vior, a Portaria 212, do Min. da Justiça, e a Portaria 601, da Secr. de Administração e Patrimônio, ambas de 14 de maio do corrente. O que elas dizem? Segundo a impressão preliminar disseminada, elas teriam qualificado o Bug como defeito e assim imposto correção gratuita, em termos gerais.

Devido, talvez, ao caráter recente de tais Portarias, publicadas há apenas quinze dias, não há ainda uma sedimentação de entendimento entre os juristas, com relação ao alcance respectivo. Uns as consideram inconstitucionais, outros vêem apenas a repetição do já previsto no CDC, há os que visualizam proteção apenas para os fornecedores e os que enxergam proteção apenas para os consumidores. Pessoalmente, somos da opinião, salvo melhor juízo, de que elas tentam criar uma razoável composição de interesses, dependendo muito o sucesso e legalidade desse intento da forma de como sejam aplicadas.

De tais discussões, a sobre (in)constitucionalidade das Portarias resgata o preceito da Constituição Federal de que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de "lei", e aí uns( partidários da noção de Separação dos Poderes ) entendem que "lei", no caso, significa "lei ordinária", que é prerrogativa do Congresso, e outros( fiéis à idéia de Equilíbrio dos Poderes ) entendem que se trata de "lei" como gênero, do qual seriam espécie não só as leis ordinárias como também decretos e inclusive portarias. No fundo, como visto, uma opção filosófica, que, tipicamente, se divide entre preferências individuais, gerando considerável grau de incerteza.

No que tange à visão de que as Portarias apenas repetem o disposto no CDC, parece procedente quanto a este ter sido o esteio invocado pelas mesmas, porém, elas vão bastante além no tocante à "explicitação" do que se acharia "implícito" no CDC.

Com relação à interpretação de que as Portarias protegem apenas os fornecedores, a mesma tem se fundado em que a Portaria 601 considera que em 1994 o problema do Bug já era notório, portanto os consumidores já deviam estar cientes do mesmo desde então, tendo havido, após 5 anos, prescrição de seu direito a qualquer ação. A nosso ver, tal construção pode esbarrar na verificação da "hipossuficiência" de um dado consumidor para estar ciente e para detectar concretamente o Bug, além de que caso o Bug seja considerado, num determinado caso, como vício oculto, ou o programa tenha sido comercializado em data mais recente, o prazo de prescrição não teria começado a contar da mera publicidade do problema em meios de comunicação, gerais ou especializados.

Finalmente, a interpretação das Portarias como proteção apenas dos interesses dos consumidores tem se baseado na leitura de que o Bug seria sempre considerado um defeito, e devendo ser corrigido gratuitamente. Ela conflita, aparentemente, com o fato de as Portarias haverem disciplinado apenas os casos de contratos que não tivessem cláusulas sobre o Bug( Portaria 601 ) e de imporem apenas a partir da data de sua entrada em vigência a declaração de estar o produto livre do Bug ou a indicação das condições para adequá-lo sem custos para o consumidor( Portaria 212 ).

Particularmente, entendemos que as Portarias oferecem margem a considerações bastante amplas, que podem servir tanto a fornecedores quanto a consumidores, dependendo da configuração de cada caso e do tipo de enfoque desenvolvido. Por exemplo: o dever de "negociar"( Portaria 601 ) uma solução sem ônus para o consumidor não significa o direito de este "impor" a correção gratuita sem quaisquer outras contra-partidas; e o Termo de Garantia( Portaria 212 ) normalmente se refere a garantia contratual, não a garantia estabelecida em lei( que é a referente a "adequação" ). Como esses exemplos, há vários outros que poderiam ser alinhados, em outro contexto.

O mais importante, no entanto, não parece ser a descrição de cada "saída" possível, e de quando e como ela se aplica a determinado tipo de caso - o que, somado ainda à experiência do intérprete, gera uma combinatória quase ilimitada de possibilidades. O fundamental, é a opção pelo tipo de "atitude" em relação ao problema do Bug, no sentido de se conscientizar de que soluções mais adequadas requerem análise caso-a-caso, com certo nível de especialização.

Gilberto Martins de Almeida - Advogado, Professor de "Direito da Informática" na PUC/RJ, membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito de Informática e Telecomunicações - ABDI, membro do Conselho Consultivo do BRASILCON - Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, Vice-Presidente do BRASILCON/RJ, e e ex-Gerente do Depto. Jurídico da IBM.

Volta Página