Analise comparativa do desempenho das turbinas de fluxo cruzado
e Francis em sistema com regularização diária de vazão
Antonio G. de Mello Jr. [a]
Ildo Luis Sauer [b]
Abstract
This work presents a case study, comparing performance of cross flow and Francis type turbines for a condition of daily variable load curve and daily water flow regularization. Cross flow turbines perform well under this condition, because efficiency curve is almost constant with the flow variation. Water flow regularization, with the use of a reservoir, may be interesting for accumulation required to satisfy peak demand, specially when the required peak flow is larger than firm system flow. Beyond cost advantages, in the case analyzed, cross flow turbines competes favorably with the Francis turbine, presenting higher daily average efficiency.
Resumo
Este trabalho apresenta um estudo de caso, comparando a performance das turbinas de fluxo cruzado e Francis para uma condição de curva de carga diária variável e uma regularização diária de vazão. A turbina de fluxo cruzado tem uma boa performance nessas condições, porque a curva de rendimentos é quase que constante. A regularização da vazão da água pode ser interessante com o uso de um reservatório, acumulando a água requerida para satisfazer a demanda de pico, principalmente quando a vazão requerida no pico é maior que a vazão firme do sistema. Além das vantagens de custo no caso analisado, a turbina de fluxo cruzado compete favoravelmente com a turbina Francis, apresentando um alto rendimento médio diário.
Introdução
A universalização do atendimento de energia elétrica em todo território nacional, principalmente, sua extensão às populações mais carentes e isoladas dos sistemas interligados de distribuição, constitui objetivo relevante. A potencial utilização das Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), incluindo as Micro e Mini Centrais, para esta finalidade, deve ser encarada como um fator indutor da busca de tecnologias que possam ser desenvolvidas no país e que apresentem maior facilidade de fabricação, menores custos e praticidade em termos de operação e manutenção.
Entre países do chamado primeiro mundo, como Alemanha e Suíça, e do terceiro mundo, como Nepal e Sry Lanka, a turbina de fluxo cruzado(1), também conhecida como Michell-Banki, Michell – Ossberger ou simplesmente Banki, já vem sendo utilizada de maneira intensa. Alguns países, como o Nepal, com as empresas BYS e BEW, desenvolverem sua própria tecnologia.
Neste trabalho apresentamos uma análise comparativa da utilização da turbina de fluxo cruzado e da turbina Francis, para atendimento à carga elétrica com variação diária típica, em sistema com regularização apenas diária de vazão. Procuramos demonstrar que, além de possuir um custo de investimento inferior à da turbina Francis, existem sistemas em que o emprego da turbina de fluxo cruzado se apresenta tecnicamente vantajosa. Isto se deve fundamentalmente a sua versatilidade de trabalhar com rendimentos quase constantes, mesmo com variações acentuadas de vazão.
A utilização da turbina de fluxo cruzado com variações de vazão
A utilização da turbina de fluxo cruzado, em mini e micro centrais hidrelétricas com variações consideráveis de vazão, pode ser de grande interesse principalmente sob aspecto técnico e econômico.
Na maioria das aplicações o campo da turbina de fluxo cruzado, coincide com o campo de da turbina Francis, conforme podemos verificar pela figura 1.
Fig. 1 – Campo de aplicação dos diversos tipos de turbinas: P= Pelton, F= Francis,
Fluxo cruzado (Michell Banki), A= Axial.
Uma situação de interesse é a da regularização diária da vazão, compatível com a carga elétrica diária, variável, incluindo pico, cujo atendimento requer variação da vazão, como função do rendimento e da carga.
Fig.2 – Turbina de Fluxo cruzado Fig.3 – Turbina Francis
Embora a turbina de fluxo cruzado apresente no ponto de potência nominal um rendimento menor que o da turbina Francis, como pode ser visto na figura 4, apresenta uma curva de rendimento mais estável para variações de vazão.
Fig.4 – Curvas de rendimentos da turbina de fluxo cruzado e da turbina Francis.
Fonte: adaptado de Harvey; Adam [4].
Esta caraterística torna interessante a análise comparativa da utilização das duas turbinas em uma mini central que possua regularização diária de vazão.
A regularização diária de vazão
Podem ocorrer três situações, para o atendimento da ponta da carga diária, por uma instalação de mini/micro central hidrelétrica :
1 – A vazão firme é suficiente para atender o pico e nesse caso não se faz necessário um reservatório. A regularização da vazão seria feita por vertedouro e admissão da turbina.
2 – A vazão firme não é insuficiente para atender o pico, porém a sobra das vazões dos horários fora do pico, sendo armazenada em reservatório, é suficiente para atender o pico.
3 - A vazão firme não é suficiente para atender o pico e a sobra das vazões fora do horário de pico, não é suficiente, mesmo que acumulada, para atender o pico. Neste caso pode-se utilizar complementação, por exemplo, como motores de combustão interna trabalhando em conjunto com a hidráulica.
A Portaria no 109, de 24 de novembro de 1982, do DNAEE – Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, considerava que uma PCH deveria atender, entre outras as seguintes condições:
Em maio de 1984 o Governo Federal, aprovou o Plano Nacional de Pequenas Centrais Hidrelétricas – PNPCH, e o DENAEE, através da Portaria no125, de 17 de agosto de 1984, aprovou a Norma no 4 na qual as PCH deveriam se enquadrar nas premissas acima.
O DENAEE, através da Portaria no136, de 6 de outubro de 1987, reduziu as condicionantes apenas para duas: ter potência total igual ou inferior a 10 MW e potência unitária de 5 MW, podendo-se utilizar qualquer técnica de engenharia.
A decisão quanto a necessidade da regularização de vazão, principalmente com o uso de uma barragem, diária ou por outros períodos, depende do comportamento do regime de vazão da bacia, do comportamento da demanda de energia da localidade, e da possibilidade de complementação com outra fonte de energia. O gráfico de carga diária de pequenos povoados isolados corresponde tipicamente a curva apresentada na figura 5.
Fig. 5 – Curva de carga diária típica.
A curva de carga diária permite equacionar o balanço de energia e água requerida, e definir a distribuição temporal das vazões para o atendimento da demanda.
O caso analisado neste trabalho adota os seguintes dados e premissas:
a) que a vazão firme ( conforme recomendado nos manuais da Eletrobrás [1], seja a vazão com freqüência de 95%, ou seja aquela que ocorre em pelo menos 95% de todas as observações de um determinado período) ; Q 95% = 1,3 m3/s.
b) que a altura de queda útil seja mantida praticamente constante e igual a 22m; Hu = 22m
c) que o rendimento do gerador permaneça constante mesmo com a variação da potência no eixo da turbina ; h g = 92 %
d) as faixas de vazão e altura são indicadas tanto para a utilização da turbina de fluxo cruzado quanto da turbina Francis, como pode ser observado na figura 1.
e) os rendimentos das turbinas, h t são os indicados no gráfico apresentado na figura 4.
Os dados do caso estudado estão compilados na tabela 1, incluindo: carga horária, potência turbinada, rendimentos das turbinas, vazão média horária requerida e excedente.
Tabela 1 – Distribuição dos rendimentos e vazões de operação e excedente
Potencia |
Potência |
Rendimento |
Q operação(m3/s) |
Q excedente(m3/s) |
||||
Gerada(kW) |
Hora |
(kW) |
Flu.Cruz. |
Francis |
Flu.Cruz. |
Francis |
Flu.Cruz. |
Francis |
147,2 |
1 |
160 |
0,8 |
0,6 |
0,9267 |
1,2356 |
0,3733 |
0,0644 |
110,4 |
2 |
120 |
0,8 |
0,5 |
0,69502 |
1,112 |
0,60498 |
0,18796 |
73,6 |
3 |
80 |
0,78 |
0,4 |
0,47523 |
0,9267 |
0,82477 |
0,3733 |
92 |
4 |
100 |
0,78 |
0,45 |
0,59404 |
1,0297 |
0,70596 |
0,27034 |
92 |
5 |
100 |
0,78 |
0,45 |
0,59404 |
1,0297 |
0,70596 |
0,27034 |
128,8 |
6 |
140 |
0,78 |
0,55 |
0,83165 |
1,1794 |
0,46835 |
0,12057 |
147,2 |
7 |
160 |
0,78 |
0,6 |
0,95046 |
1,2356 |
0,34954 |
0,0644 |
156,4 |
8 |
170 |
0,8 |
0,6 |
0,98462 |
1,3128 |
0,31538 |
-0,0128 |
156,4 |
9 |
170 |
0,8 |
0,6 |
0,98462 |
1,3128 |
0,31538 |
-0,0128 |
110,4 |
10 |
120 |
0,78 |
0,5 |
0,71284 |
1,112 |
0,58716 |
0,18796 |
128,8 |
11 |
140 |
0,78 |
0,55 |
0,83165 |
1,1794 |
0,46835 |
0,12057 |
165,6 |
12 |
180 |
0,8 |
0,65 |
1,04254 |
1,2831 |
0,25746 |
0,01688 |
165,6 |
13 |
180 |
0,8 |
0,65 |
1,04254 |
1,2831 |
0,25746 |
0,01688 |
156,4 |
14 |
170 |
0,8 |
0,6 |
0,98462 |
1,3128 |
0,31538 |
-0,0128 |
156,4 |
15 |
170 |
0,8 |
0,6 |
0,98462 |
1,3128 |
0,31538 |
-0,0128 |
174,8 |
16 |
190 |
0,8 |
0,7 |
1,10045 |
1,2577 |
0,19955 |
0,04234 |
211,6 |
17 |
230 |
0,81 |
0,85 |
1,31568 |
1,2538 |
-0,01568 |
0,04623 |
257,6 |
18 |
280 |
0,82 |
0,9 |
1,58217 |
1,4415 |
-0,28217 |
-0,1415 |
331,2 |
19 |
360 |
0,82 |
0,92 |
2,03422 |
1,8131 |
-0,73422 |
-0,5131 |
294,4 |
20 |
320 |
0,82 |
0,9 |
1,80819 |
1,6475 |
-0,50819 |
-0,3475 |
257,6 |
21 |
280 |
0,82 |
0,9 |
1,58217 |
1,4415 |
-0,28217 |
-0,1415 |
220,8 |
22 |
240 |
0,81 |
0,85 |
1,37289 |
1,3083 |
-0,07289 |
-0,0083 |
202,4 |
23 |
220 |
0,81 |
0,8 |
1,25848 |
1,2742 |
0,04152 |
0,02579 |
165,6 |
24 |
180 |
0,8 |
0,6 |
1,04254 |
1,39 |
0,25746 |
-0,09 |
Os valores a seguir foram calculados a partir da tabela 1, com planilha Excel:
1- Energia necessária para atender a curva de carga diária ( Energia Firme(2) ) |
||||||||||||
Eg = |
4103,2 |
kWh |
||||||||||
2- O volume total de água necessário para uma potência com Q 95% |
||||||||||||
Vt = |
112320 |
m3 |
||||||||||
3- O volume total necessário para a turbina Francis atender a carga diária |
||||||||||||
VF= |
110467 |
m3 |
||||||||||
4- Volume total necessário para a turbina de fluxo atender a carga diária |
||||||||||||
VM = |
92635 |
m3 |
||||||||||
5- Vazão adicional necessária para atender o horário de pico com a turbina Francis |
||||||||||||
QpF = |
1,29325 |
m3/s |
||||||||||
6- Vazão adicional necessária para atender o horário de pico com a turbina de fluxo |
||||||||||||
QpM = |
1,8953 |
m3/s |
||||||||||
7- Volume do reservatório para atender o pico de carga com a turbina Francis |
||||||||||||
VrF = |
4655,69 |
m3 |
||||||||||
8- Volume do reservatório para atender o pico de carga com turbina de fluxo |
||||||||||||
VrM = |
6823,12 |
m3 |
||||||||||
9- Potência necessária para atender o pico da carga diária |
||||||||||||
Np = |
360 |
kW |
||||||||||
10-Máxima vazão necessária no horário de pico com o uso da turbina Francis |
||||||||||||
QtF = |
1,8131 |
m3/s |
||||||||||
11-Máxima vazão necessária no horário de pico com a da turbina de Fluxo |
||||||||||||
QtM = |
2,0342 |
m3/s |
||||||||||
12- Potência instalada da turbina |
Ni = |
360 |
kW |
Da tabela 1 podemos também obter outros resultados:
- Potência a fio d’água para turbina Francis (com Q 95%) NfF = 258,121 kW
- Potência a fio d’água para turbina fluxo cruzado (Q95%) NfM = 230,064 kW
- Volume vertente ou sobra no caso da turbina Francis QvF = 1853 m3
- Volume vertente ou sobra no caso da turbina de fluxo Cruzado QvM = 19685 m3
As figuras 6 e 7, do comportamento diário das vazões, para a turbina de fluxo cruzado e para a turbina Francis, permitem conclusões importantes quanto à capacidade de geração de energia total por esses dois tipos de turbinas, sob variação considerável da vazão, durante as 24 horas do dia.
.
Fig. 6 –Comportamento diário da vazão para a turbina de Fluxo cruzado
Fig.7 – Comportamento diário da vazão para a turbina Francis
O fator custo
Segundo MEIER , U.[2], o custo para empreendimentos de Micro e Mini centrais pode variar de US$ 550 à 2800 US$ por kW instalado, dependendo das condições de vazão, altura e obras civis. Considera que a participação dos equipamentos deve estar na média de 26,5% do custo total da obra, abaixo dos 40 a 50 % geralmente divulgados. Salienta que um custo abaixo de US$ 1000 por kW instalado só é possível com tecnologia local.
NAKARMI, K. e outros [3] apresentam a figura 8 para comparação para custo de turbinas Francis e de fluxo cruzado.
Fig.8 – Custo das turbinas Francis e fluxo cruzado conforme variação da queda e vazão. Adaptado de NAKARMI,K. [3]
HARVEY, Adam, e outros [4], mostram o custo comparativo entre diversos tipos de turbinas para mini e micro centrais hidrelétricas conforme a faixa de potência, tabela 2.
Tabela 2 – Custo de turbinas em US $ 1000 sem gerador e redutor
Potência no eixo kW |
Fluxo cruzado |
Francis |
2 |
1 - 2 |
4 - 6 |
5 |
2 - 6 |
8 - 10 |
10 |
2 - 10 |
15 - 20 |
20 |
3 - 14 |
20 - 30 |
50 |
5 - 30 |
25 - 70 |
100 |
30 - 50 |
40 - 100 |
150 |
50 - 80 |
60 - 120 |
Adaptado de Adam Harvey [4]
Conclusões
1 – A turbina de fluxo cruzado é recomendada quando se deseja otimizar a energia gerada em situações de variação grande de vazão no sistema, pois a sua variação correspondente de rendimento é bem menor que da turbina Francis ( figura 4 ).
2 – O volume de água a ser armazenado durante o dia para atender a ponta é maior para a turbina de fluxo cruzado que para Francis, porque no ponto de potência de pico a turbina Francis possui um rendimento maior, necessitando de menor vazão. Isso implica num reservatório de volume maior a ser utilizado na turbina de fluxo cruzado figuras 6 e 7 ).
3 – A vazão total utilizada para mesma geração de energia durante o dia pela turbina de Fluxo cruzado é bem menor que a necessária para a Francis gerar a mesma energia.
4 – O excedente de vazão não utilizada na turbina de fluxo cruzado pode ser aproveitado tendo em vista outras finalidades como: irrigação, saneamento, lazer, limpeza de áreas, etc.
5 - A turbina de fluxo cruzado apresenta uma melhor flexibilidade no que diz respeito ao aproveitamento e variação da vazão. Para enfatizar, se a vazão firme fosse 1,2 m3/ s ao invés de 1,3 m3/s a turbina Francis não poderia atender mais a curva de carga proposta, enquanto a turbina de fluxo cruzado ainda se adaptaria a nova configuração garantindo a demanda.
Bibliografia
[1] - Ministério das Minas e Energia, Eletrobras, DNAEE. Manual de
Mini Centrais Hidrelétricas. Rio de Janeiro, 1985.
[2] - Meier, Ueli. Local Experience with Micro–Hydro Technology, 3a ed. St. Gallen,
Switzerland, SKAT Publications, 1985.
[3] - Nakarmi, K. ; Arter, A. ; Widmer, R. ; Eisenring, M. Cross Flow
Turbine Design and Equipment Engineering – MHGP series, vol. 3, 1a ed.
St. Gallen, Switzerland, SKAT Publications, 1993.
[4] - Harvey A.; Brown, A.; Hettiarachi, P.; Inversin, A. Micro Hydro
Design Manual - A Guide to Small Scale Power Schemes. London, IT
Publications, reprinted, 1998.
- JIANDONG, T. ; NAIBO, Z. ; XIANHUAN, W. ; JING, H. ; HUISHEN, D. Mini
Hydropower. West Sussex, England, John Wiley & Sons Ltd, 1a ed., 1997.
- MELLO Jr., A.G. A turbina de fluxo cruzado como opção política para mini e
micro centrais hidrelétricas.(Dissertação de mestrado, previsão Outubro de 1999). PIPGE- USP.